quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A gota d’água

Francis caminhava cabisbaixa, como se fosse picada por um inseto, criatura imaginária destas que nos dão sobressaltos e estão em algum lugar oculto, como alguma das tantas que a sobressaltavam. Levantou a cabeça e saiu pisando firme, tentava afastar seus constantes fantasmas. Que saudade! Não saberia ao certo como ele seria hoje, quando estaria bem velho e talvez num canto qualquer tentando encontrar alguma solução mirabolante para um problema que ninguém vai utilizar, como uma solução econômica, uma alteração no modo de se comportar de um time de futebol, ou escalação do time, no campeonato... espanhol, ou da administração de uma empresa que nunca teve. Mas sempre tinha respostas, é o que dizem dele, quando falam cheios de saudade e admiração. Olhou, tentando entender, vídeos, ouviu palestras, conhecia o tom da voz, os recursos, o tipo de fala e até de onde muitas idéias saíram, vídeos, fotos, filmes, textos, desenhos que produziu. Ah! E ele desenhava bem e parecia destas pessoas o Karl é assim, Carlos Gustavo que ele pensou Karl Gustav, o músico, meu irmão mais novo, na época tinha quatro anos, era a cara mais linda do mundo, nossa como chamou por ele dias e dias correndo por todo o canto.

Tudo estava da pior maneira dizem, tanto pelo período pós-eleitoral, e parece que suas predições se cumpriam, agora melhoramos algumas coisas, aprendemos a negociar, trabalhamos duro e estamos bem. Tudo estava mal naquele ano, o clima, as pessoas parece que resolveram entrar em crise ao mesmo tempo, aqueles que eram mais próximos estavam em pedaços, e ele os carregava com sua esperança e com um afeto que ainda hoje está nas gravações, eram o seu vício, hoje entendo. Mas alguma coisa saíra do lugar e poderia ser a mesma realidade que acabara com tantos, ele estava com cinqüenta e sete anos. Minha mãe ainda chora, quando nos conta como ele era e se arrepende de ter entendido, diz ela, tarde demais.

Às vezes uma tragédia funciona como um despertador e foi o que aconteceu, como por um passe de mágica os convites para participação disto ou daquilo se sucederam, tinha de fazer alguma coisa e fez. As pessoas não a deixaram se sentir só, como se pudessem preencher a lacuna... Não preencheram, mas se aproximaram uns dos outros, fizeram o que era mais importante, retomaram de onde em algum lugar de si mesmas as coisas haviam parado.

A dor pode aproximar. É isto, mas sinto falta, sei como ele era, mas havia este tipo de cansaço que possuem somente aqueles que carregam sonhos por tempo demais, e fora assim a pessoa da casa, dos telefones a qualquer hora, e de soluções e respostas. Acho que no fundo ele sempre soube e mantivera a esperança de que pudessem reagir, aproximando-se. Não era o que aconteceu naquele ano atípico. Tudo foi ruim. As respostas não vieram, as soluções tentadas foram infrutíferas, muitos se desesperavam, minha mãe era uma delas, sei agora. Acho que ele sabia, dizem que a maioria do que dizia se confirmava algum tempo e até anos depois, é, tenho muito disso, mas não quis seguir o mesmo caminho, não quis segui-lo, por causa... parou de pensar como querendo arrancar a sequência de idéias. Quero esquecer e vem de novo. Francis olhou a cidade, passava ao lado do parque de sempre, respirou fundo e veio na mente, faz um mantran. Droga! Está sempre de alguma forma. Respirou fundo.

Ele me chamou, ainda escutava o Karl brabo dizendo que não era mais amigo dele, e ele me chamou, era uma bagunça de crianças e sempre fazíamos a mesma coisa, ainda que ele tentasse trabalhar, nos deixava livres e livres virávamos a casa de pernas para o ar. Ele havia chamado a atenção de nós dois, e devo ter pedido alguma coisa, sei lá, minha mãe disse que ele vinha trabalhando até altas horas, cansado, e ela lágrimas correndo dos olhos dizia que não conseguia chegar perto, fazia dias, meses mesmo, a mulher precisa estar bem para certas coisas, ou apaixonada me dizia, o homem não e ele era deste tipo que se liga ao invés de desligar e descarregar. Teria me chamado da cadeira como nunca, estendeu os braços e me olhou com o olhar do único fantasma capaz de derrotar um ser humano, havia solidão nele, agora sei, eu a sinto me levando pelas ruas e no meio das gentes.

Eu não sei porquê respondi tomada, Eu não quero mais ser tua amiga. Nunca mais!

Ele baixou os olhos e era como se não fosse eu, fossem todos aqueles por quem ele lutava e que no fim não lutavam por coisa nenhuma, e menos por ele, menos com ele. Como esses fantasmas que se arrastam esperando a misericórdia de nascer junto de novo, para se redimirem, como eu me surpreendo querendo. E repeti a mesma frase duas, três vezes, e dentro dele que lutava tanto por tantos alguma coisa saiu do lugar, seus olhos foram se afastando, e me olhava cada vez de mais longe, isso eu lembro não sei como. Hoje me dizem que ele saiu em silêncio, apanhou alguma coisa do armário, e saiu em silêncio, o silêncio que existia até quando falava com as pessoas. Olhou para os livros, o material de desenho, o computador sempre ligado, em meio a um texto interminável, não me olhou de novo, apenas saiu, e tenho agora esta vontade de correr no tempo atrás dele e de gritar me leva junto, eu te amo. Mas ele não estava mais ali, tinha sido vencido. Atravessou a porta e desceu os pequenos degraus. Ela diz que eu estava estranha, imóvel. Os olhos parados. E disse apenas: Papai está longe. Desde esse dia nossa vida mudou, não como de alguma forma ele queria, mas com o que ele fez em cada um de nós. Ninguém o culpou nunca, ao contrário é como se todos tivessem alguma coisa a ver, fomos nós que tínhamos desistido dele, até mesmo nós os pequenos, sem o saber. Ele sabia que somente algo grande e trágico pode realmente unir as pessoas. Ainda sinto aqueles braços que abraçavam apertado, mas lembro dos braços estendidos, como era grande seu amor, que não pedia mais que um abraço e quase sempre era tudo o que recebia, no fim de uma palestra ou de uma aula, e até de minha mãe, e era o que se permitia receber. Naqueles dias ele precisava demais, talvez de si mesmo, talvez de uma resposta e como sempre encontrou apenas em si o que precisava.

Todos mudamos em torno e depois dele. A morte as vezes une.
20/10/2010.

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